Cartografia Mítica da Escarpa Devoniana

Apresentação

Por Maria Baptista

O projeto “Cartografia Mítica da Escarpa Devoniana” foi realizado ao longo do ano de 2020.

O resultado dessa jornada foi apresentado em uma exposição no Museu da Fotografia – Solar do Barão, em Curitiba, em maio e junho de 2021.

Esse site foi pensado como uma mostra de processo, concentrando informações e referências levantadas durante a pesquisa. As imagens e textos presentes nesse site são de minha autoria, exceto quando há citação explícita de fonte diversa no título ou legenda.

Esse projeto foi realizado com o apoio do Fundo Municipal da Cultura – Programa de Apoio e Incentivo à Cultura – Fundação Cultural de Curitiba e da Prefeitura Municipal de Curitiba.

A paisagem típica dos Campos Gerais é formada sobre um relevo de planalto, com campos abertos permeados por afloramentos rochosos e capões de floresta de araucária. Aqui os biomas da Mata Atlântica e do Cerrado brasileiros se encontram, formando uma região de singular biodiversidade.

Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2020 eu iniciava uma trajetória pelos municípios de Balsa Nova, Palmeira, Ponta Grossa e Tibagi. Por ocasião do isolamento social exigido pela pandemia do Covid-19, iniciado em março de 2020, me vi tendo que explorar territórios virtuais e repensar o conceito da exposição, que estava programada inicialmente para abrir em junho de 2020, no MuMA – Museu Municipal de Arte de Curitiba. Para realizar essa cartografia foram ao todo mais de 2.000 km rodados, passando por lugares históricos e pré-históricos, reservas naturais e espaços simbólicos desse fragmento fantástico da paisagem da Escarpa Devoniana do Paraná.
Acima: Foto do Sítio Paleontológico de Icnofósseis Devonianos de São Luiz do Purunã,. Patrimônio Cultural tombado pelo Estado do Paraná em 2011 Á esquerda: imagens reproduzidas da placa existente no local (três primeiras) e vestígios de trilobitas (três últimas).
Icnofósseis, Balsa Nova, PR

Neste afloramento de arenito, na beira da BR 277 – 376 (500 metros antes da praça de pedágio), em Balsa Nova, encontrei vestígios de seres marinhos que habitaram esse lugar, há cerca de 400 milhões de anos, durante o Período Devoniano.

Nesse período, a vida se concentrava principalmente nos mares, repletos de tubarões, peixes e corais. A movimentação de artrópodes conhecidos como Trilobitas, neste raso fundo de mar, ficou registrada na rocha.

Formação do território

Diz-se que, há mais de 650 milhões de anos, existia no planeta um único supercontinente chamado Rodínia. Essa imensa placa continental se fragmentou e alguns milhões de anos depois se juntou novamente, formando outro supercontinente, a Panócia. Essa, por sua vez, se fragmentou também e mais tarde se juntou formando, há 200 milhões de anos, a Pangea. Esses ciclos de afastamentos e colisões de placas continentais são uma constante em nosso planeta. A cerca de 100 milhões de anos, a Pangea já se encontrava bastante fragmentada, numa deriva que acabou por trazer os continentes até sua configuração atual.

Essas imagens mostram as transformações ocorridas desde milhões de anos até o presente. O ponto vermelho marca a localização aproximada dos Campos Gerais, no sul do Brasil. Imagens: https://dinosaurpictures.org/ancient-earth#750

Paisagem Submersa
Fotografia, 2016
Cânion Guartelá, Tibagi, PR
Audiovisual Nada é Imagem, Nada é Miragem, 2016

Vila Velha, Ponta Grossa, PR

Vila Velha, a lendária Cidade Extinta de Pedra. Em tupi-guarani*, Itacueretaba: Ita (pedra), Kueve (no tempo antes do anterior imediato) e Taba (aldeia). Diz a lenda que esse foi o lugar escolhido por Tupã para guardar o tesouro Itainhareru, protegido pelos melhores guerreiros, índios escolhidos à dedo por entre as tribos da região. Nessa época, era conhecida como Abaretama. Ava (pessoa), Etâ (comunidade) e Ma (onde/já). Como traduzir? Em 1953 foi criado o Parque Estadual de Vila Velha, tombado pelo Patrimônio Estadual em 1966. Além dos arenitos, o parque também inclui a Lagoa Dourada e as Furnas. Essas imagens que apresento são de 2015, quando eu participava de uma expedição artística aos Campos Gerais, pelo projeto Na Tela Rútila das Pálpebras. Em função da pandemia, não pude revisitar esse lugar, razão pela qual retomo essas fotos de arquivo, muitas das quais ainda inéditas

*Léxico Guarani – Dialeto Mbyá do autor Robert A. Dooley.

A Lenda da Vila Velha …………………………………………………………………………………………………………………………. Publicada por João Baptista Groff em 1958 no jornal O Dia

Itacueretaba, antigo nome do que conhecemos hoje por Vila Velha, significa aproximadamente a “cidade extinta de pedra”. Localizada à margem direita do rio Tibagi, o rio do pouso, na vasta e ondulada Ibipeba (planície) que Saint Hilaire, maravilhado, disse ser o paraízo do Brasil. Este recanto tinha sido escolhido pelos primitivos habitantes para ser a abaretama (terra dos homens), onde esconderiam o precioso Itainhareru, o precioso tesouro. Tendo a proteção de Tupã, era cuidadosamente guardado por uma legião de Apiabas (varões) que eram escolhidos dentre os melhores homens de todas as tribos e treinados para desempenhar-se da honrosa missão.

Os apiabas tinham todas as regalias e distinções e desfrutavam de uma vida régia. Era-lhes, porém, vedado o contato com as cunhatãs (mulheres), mesmo que fossem de suas próprias tribos. A tradição dizia que as cunhatãs, estando de posse do segredo do Abaretama, o revelariam aos quatro ventos e chegada a notícia aos ouvidos dos inimigos do seu povo, estes tomariam o tesouro para si. Tupã, o onipotente, deixaria de resguardar seu povo se aquele tesouro fosse perdido e lançaria sobre ele as maiores desgraças.

Os Apiabas eram fortes, ativos e bravos e seu único trabalho consistia em embelezar a terra tornando-a num dos mais belos potirendaba (jardim) daquelas planicies. Tupã não permitia que nacele recanto sagrado houvesse o pecado. Numa certa época Duhi (em nossa língua corresponde à Luiz) fôra escolhido para chefe supremo dos Apiabas. Como todos os outros, tinha sido preparado desde a mais tenra infância para aquela sagrada missão.

Duhi, entretanto, não desejava seguir aquele destino celibatário. Seu sangue achava-se perturbado pelo feminil fascínio – era um cunhapixara (mulherengo). As tribos rivais, ao terem conhecimento da notícia, de pronto resolveram aproveitar-se da situação e escolheram entre as suas donzelas uma que deveria ir tentar o jovem guerreiro e tomar-lhe o coração, para arrebatar-lhe o segredo do tezouro.

A escolha foi Aracê Poranga (Aurora Bonita). Não lhe foi difícil conseguir a atenção do ardoso Duhi e pouco a pouco, ir entrelaçando-o em sua habilidosa teia, de tal modo que logo ele estava completamente apaixonado e subjugado à seus pés. Ela já havia entrado no Abaretama, com o consentimento de Duhi, que não teve como resistir-lhe ao desejo. Mas Aracê era mulher. E Duhi era homem. E eles se amaram.

Aracê traiu seus parentes em nome do seu amor, tal qual Duhi traíra sua missão em nome de Aracê. Numa tarde primaveril, quando os Ipês (árvore de casca) já florescidos deixavam cair suas flores douradas numa chuva de ouro. Aracê veio ao encontro de Duhi trazendo uma taça de Urucuri, o licôr de butiás, para embebedar Duhi, mas o amor já se assenhoreara completamente de sua razão e ela tomou também o licôr e ficaram quedados à sombra do Ipê languidamente entrelaçados…

Tupã, vingou-se desencadeando um terremoto que abalou toda a planície. A fúria divina convulsionava-se dentro do solo e a destruição recaiu sobre aquela região trazendo morte e dôr. A abaretama completamente destruída tornou-se de pedra, o tesouro aurífero fundiu-se e liquidificou-se e os dois amantes, castigados, ficaram um ao lado do outro, também petrificados. Ao seu lado, ficou a causa da sua desgraça, uma taça de pedra… E quando ali se passa, ainda se pode ouvir o vento repetindo a última frase de Aracê: “Xê pocê o quê” (dormirei sempre contigo…). E foi assim que abaretama tornou-se Itacueretaba.

A Ibitipóca, a terra que se fendeu, são as grotas que encontramos próximas à Vila Velha e o tesouro fundido é aquela lagôa que chamamos Dourada a qual, quando o sol lhe bate em cheio, ainda reflete o brilho aurífero. Duhi e Aracê, equivalente indígena de Adão e Eva, estão ainda hoje, lado a lado, circundados de ipês descendentes daquele que assistiu a morte dos dois. E os sobreviventes daquêle povo partiram para outras terras onde a maldição de Tupã não os alcançasse. Fundaram outro império nestas terras imensas da América do Sul!

Cânion Guartelá, Tibagi, PR

Aqui tudo é imenso, tudo transborda. O silêncio, a vertigem, o sublime.

“No alto dessa escarpa há conchas, restos de sal nas brechas, asteróides marinhos. Rios e abismos não demarcam fronteiras. São caminhos. No céu as constelações se movem como águias, onças-pintadas, pássaros nômades. Nada está fora do lugar. Você vê?” [trecho da poesia Fábula, de Josely Vianna Baptista]

Acima, fotos do processo de feitura do mapa “Caminho do Peabiru”, com a costura à mão deste caminho mítico, tomando por base o itinerário do viajante europeu Ulrich Schmidl, que atravessou o Paraná em 1552-53, esboçado por Reinhard Maack no seu livro Geografia Física do Estado do Paraná, publicado em 1968. Destaco também um fragmento da Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500, que reproduzi em meu mapa, palavra por palavra, com ajuda de um normógrafo aranha e caneta nanquim (ver abaixo o link para download da carta na íntegra). Também utilizei, como referência para as famílias linguísticas citadas no meu mapa, o extraordinário Mapa Etno-histórico do Brasil e Regiões Adjacentes, de Curt Nimuendaju. Esse mapa foi desenhado à mão originalmente para o Smithsonian Institution, em 1942, e nos anos seguintes foram feitas mais duas cópias, uma para o Museu Paraense Emílio Goeldi e outra para o Museu Nacional. Em 1981, o mapa foi adaptado para impressão pela primeira vez e, finalmente, reimpresso em 1987, após criteriosa revisão pelo IPHAN (ver abaixo o link para download dessa última versão).

Detalhe do mapa “Vestígios e Resistência dos Povos Originários no Paraná”, com as principais cidades e localidades nomeadas em língua indígena, bem como as terras atualmente reconhecidas pela Funai ou em processo de disputa/reconhecimento/demarcação.
Detalhe do mapa “Para onde correm os rios depois de Crinjijimbé”, onde destaquei os principais picos da região. Crinjijimbé, na mitologia kaingang, seria uma possível referência à Serra do Mar, esse grande divisor de águas que acompanha o litoral do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Alinhavei ainda os limites da Área de Proteção Ambiental da Escarpa Devoniana, dentro do qual podemos encontrar as nascentes do rio Ti bagi, afluente do rio Paranapanema; e nascentes do rio Ribeira, que corre direto para o oceano até alcançar sua foz, na altura de Iguape, SP – terras de ocupação indígena milenar por onde passava a linha do Tratado de Tordesilhas, que oficializava a colonização européia no Brasil em 1494.

Lendas ou Mitos dos Índios Kaingang

Publicado por Telêmaco Borba em Actualidade Indígena. Curitiba: Impressora Paranaense, 1908. Disponível na íntegra pelo Portal Kaingang.

Em tempos idos, houve uma grande inundação que foi submergindo toda a terra habitada por nossos antepassados. Só o cume da serra Krinjijimbé emergia das águas. Os Kaingangues, Kayurukrés e Kamés nadavam em direção a ela levando na boca achas de lenha acesas. Os Kayurukrés e Kamés, cansados, afogaram-se; suas almas foram morar no centro da serra. Os Kaingangues e uns poucos Kurutons, alcançaram a custo o cume do Krinjijimbé, onde ficaram, uns no solo, e outros, por exigüidade de local, seguros aos galhos das árvores; e ali passaram muitos dias sem que as águas baixassem e sem comer. Já esperavam morrer, quando ouviram o canto das saracuras que vinham carregando terra em cestos, lançando-a à água, que se retirava lentamente. Gritaram eles às saracuras que se apressassem, e estas assim o fizeram, amiudando também o canto e convidando os patos a auxiliá-las. Em pouco tempo chegaram com a terra ao cume, formando como que um açude, por onde saíram os Kaingangues que estavam em terra. Os que estavam seguros aos galhos das árvores transformaram-se em macacos e os Kurutons em bugios. As saracuras vieram, com seu trabalho, do lado de onde o sol nasce; por isso nossas águas correm todas ao poente e vão todas ao grande Paraná. Depois que as águas secaram, os Kaingangues se estabeleceram nas imediações de Krinjijimbé. Os Kayurucrés e Kamés, cujas almas tinham ido morar no centro da serra, principiaram a abrir caminho pelo interior dela. Depois de muito trabalho chegaram a sair por duas veredas: pela aberta por Kayurucré brotou um lindo arroio, e era toda plana e sem pedras; daí vem terem eles conservado os pés pequenos. O mesmo não aconteceu a Kamé, que abriu sua vereda por terreno pedregoso, machucando – ele e os seus – os pés, que incharam na marcha, conservando por isso grandes pés até hoje. Pelo caminho que [os Kamés] abriram não brotou água e, pela sede, tiveram de pedi-la a Kayurucré, que consentiu que a bebessem quando necessitassem. Quando saíram da serra mandaram os Kurutons para trazer os cestos e cabaças que tinham deixado embaixo. Estes, porém, por preguiça de tornar a subir, ficaram ali e nunca mais se reuniram aos Kaingang: por esta razão, nós, quando os encontramos, os pegamos como nossos escravos fugidos que são. Na noite posterior à saída da serra, atearam fogo e com a cinza e carvão fizeram tigres (ming), e disseram a eles: −Vão comer gente e caça. E os tigres foram-se, rugindo. Como não tinham mais carvão para pintar, só com a cinza fizeram as antas (oyoro), e disseram: −Vão comer caça. Estas, porém, não tinham saído com os ouvidos perfeitos, e por esse motivo não ouviram a ordem; perguntaram de novo o que deviam fazer. Kayurucré, que já fazia outro animal, disse-lhes gritando e com maus modos: − Vão comer folha e ramos de árvore; desta vez elas, ouvindo, se foram: eis a razão porque as antas só comem folhas, ramos de árvores e frutas. Kayurucré estava fazendo outro animal; faltava ainda, a este, os dentes, língua e algumas unhas, quando principiou a amanhecer. E, como de dia não tinha poder para 2 fazê-lo, pôs-lhe [no animal] às pressas uma varinha fina na boca e disse-lhe: − Você, como não tem dente, viva comendo formiga. Eis o motivo por que o tamanduá (ioty), é um animal inacabado e imperfeito. Na noite seguinte continuou e fez muitos animais, e entre eles as abelhas boas. Ao tempo que Kayurucré fazia esses animais, Kamé fazia outros para os combater: fez os leões americanos (ming-koxon), as cobras venenosas e as vespas. Depois de concluído esse trabalho, marcharam a reunir-se aos Kaingang. Viram [então] que os tigres eram maus e comiam muita gente. Então, na passagem de um rio fundo, fizeram uma ponte de um tronco de árvore e, depois de todos passarem, Kayurucré disse a um dos de Kamé que quando os tigres estivessem na ponte puxasse esta com força, afim de que eles caíssem na água e morressem. Assim o fez o de Kamé, mas, dos tigres, uns caíram na água e mergulharam, outros saltaram ao barranco, segurando-se com as unhas. O de Kamé quis atirá-los de novo ao rio, mas como os tigres rugiam e mostravam os dentes, tomou-se de medo e os deixou sair. Eis porque existem tigres em terra e nas águas. Chegaram a um campo grande, reuniram-se aos Kaingangues e deliberaram casar os moços e as moças. Casaram primeiro os Kayurucrés com as filhas dos Kamés, estes com as daqueles, e como ainda sobravam homens, casaram-nos com as filhas dos Kaingang. Daí vem que Kayurucrés, Kamés e Kaingang são parentes e amigos.

Esse canto Kaingang integra o CD “Vozes Kaingang na Aldeia Grande”, uma coletânea de cantos tradicionais e música instrumental gravada por Felipe da Silva Retón, João Carlos Kanheró (Kasu) e Zílio Salvador (Jagtyg), com produção Rogério Reus Gonçalves da Rosa e Rodrigo Venzon. Fumproarte, 2015. A transcrição musical que aparece na imagem e as informações abaixo são de autoria de Berenice de Almeida e Magda Pucci, autoras do projeto “Cantos da Floresta“, que resgata músicas dos povos indígenas Guarani, Kaingang, Paiter Suruí, Ikolen Gavião, Yudjá, Kambeba, Krenak, Xavante e povos do Rio Negro. Esse canto Kaingang conta a felicidade da formiga ao ver a moça socando milho, pois poderá comer os farelos que caem do pilão e alimentar seus filhos durante o inverno. A primeira frase é repetida várias vezes, como um refrão que estrutura a cantiga. O cantor se expressa livremente e a melodia segue a métrica do texto, que pode alongar ou encurtar a frase musical. Preste atenção na pronúncia mais aproximada da língua kaingang, é necessário ouvir muitas vezes as gravações, pois há sons nessa língua que não existem no português.
Parque Nacional dos Campos Gerais, Cachoeira da Mariquinha, Ponta Grossa, PR, 2020
Cachoeira da Mariquinha, Ponta Grossa, PR

Nos arredores da Cachoeira da Mariquinha, encontramos uma série de sítios arqueológicos, conhecidos como Cambijú, Morro do Castelo e Geométricas I e II. São abrigos sob rocha com pinturas rupestres feitas com pigmentos naturais, predominantemente à base de óxido de ferro, responsável pela cor avermelhada dos desenhos.

Sob a lapa do Abrigo Cambijú, acompanhada por um grupo de viajantes e guiada pelos profissionais de turismo Guilherme Forbeck e Alessandro Chagas (ver Arqueotrekking), conhecedores da região e guardiões da natureza.

Abrigo Cambijú, Ponta Grossa, PR

Se fosse possível caminhar em linha reta de Vila Velha até esse local, seriam cerca de 6km. Até os idos de 1500, quando se iniciou a invasão européia no Brasil, a região era ocupada por grupos humanos nativos, habitantes imemoriais desses Campos Gerais, pertencentes aos troncos linguísticos Jê e Tupi.

Pesquisando em um dicionário Guarani-Mbyá encontrei as palavras Kã (seio), Kamby (leite), Ju (1.relativo à cor branca; 2.outra vez, de volta; 3.vir) ou mesmo Mbyju’i (andorinha). O que será que nos quer dizer essa toponímia Cambiju? 

Já no início dos anos 1600, essa região foi ocupada por abastados portugueses, barões e senhores de terras, tornando a Fazenda Cambiju umas das mais antigas de Ponta Grossa.

Em 1973, o Abrigo Sob-Rocha Cambiju foi registrado no Iphan como Patrimônio Arqueológico, apresentando diversas pinturas rupestres e material lítico tais como pontas de flechas e lâminas de machado. Esses achados, com idade estimada em 3.000 anos, são indícios de uma época em que indígenas caçadores-coletores conviviam com uma mata exuberante de araucárias e abundante fauna de veados, guarás, emas, tatus e tamanduás.

Reproduções em desenho das pinturas rupestres do Abrigo Cambijú, tiradas do artigo do arqueólogo Igor Chmyz: “Nota prévia sobre o Sítio PR PG 1: Abrigo-sob-rocha Cambiju”. Estudos Brasileiros, Curitiba, dez. 1976. 
Pinturas rupestres no Abrigo Cambijú. Nota-se que há riscos em preto recentes degradando o desenho original.

Abrigo Morro do Castelo, Ponta Grossa, PR

No Abrigo Morro do Castelo fui absorvida por uma paisagem milenar, mergulhada no silêncio das pedras, entre pinturas de cervídeos, emas e outros símbolos indecifráveis marcados em vermelho ferroso para sempre naqueles arenitos. Já mais contemporâneos são os amantes Roger e Kelly, aparentemente de Joinville, que também decidiram eternizar seus nomes ao lado das pinturas pré-históricas.

Ao fim do dia, contemplamos um estonteante pôr do sol em tons de laranja fosforescente, cuja intensidade jamais poderá ser reproduzida. E nesse fim de tarde, quando parei sob a lapa ancestral, já sem palavras, não antevia o céu absolutamente estrelado que viria a aparecer na próxima hora. E assim seguem os dias e noites nos Campos Gerais. E seguimos.

Abrigo Geométricas I

Nesse abrigo encontrei padrões geométricos, uma série de pontos e algumas marcas de dedos. Esse sítio arqueológico não se encontra cadastrado em nenhum órgão de proteção governamental, estando sujeito à degradação natural e à depredação humana.

Abrigo Geométricas II

Nesse abrigo encontramos também padrões geométricos, pontilhados grandes e pequenos e linhas em zigue-zague. Assim como boa parte dos sítios arqueológicos da APA da Escarpa Devoniana, este sítio não possui proteção de nenhuma instituição, deixando esse patrimônio histórico e cultural sujeito ao desaparecimento.

Ao lado do sítio arqueológico Abrigo Geométricas II, realizei uma intervenção de arte ambiental, onde eu buscava refletir sobre os processos de
transformação da paisagem, bem como promover a discussão a respeito da arte contemporânea em um contexto transdisciplinar. O registro da ação pode ser visto neste vídeo, com imagens de Oruê Brasileiro (e algumas de minha autoria), trilha sonora de Du Gomide e edição de Carolina Bassani, Lua Marinho e Mayara Santarem.

Intervenção de arte ambiental


Em dezembro de 2020, justamente na fronteira do Parque Nacional dos Campos Gerais com a propriedade particular da Cachoeira da Mariquinha (há poucos metros do Abrigo Geométricas II), realizamos o plantio de 100 árvores nativas da Floresta de Araucária, ampliando a área florestal sobre a área de monocultura existente, num movimento reverso ao desmatamento e esgotamento dos recursos naturais. Conceitualmente, a intervenção buscava olhar para a fronteira entre os interesses público e privado, encontrando um lugar em que a valorização do patrimônio natural e cultural fosse um interesse comum.

A intervenção na paisagem começou com a demarcação da área. quando ceifamos a aveia, que meses antes cobria todo o campo. Quando a soja chegou, limpamos novamente a área e em seu lugar plantamos mudas de araçás, pitangueiras, tapiás, aroeiras pimenteiras, angicos brancos, angicos gurucaias e, claro, araucárias. Cada muda recebeu uma estaca de madeira com uma etiqueta colorida contendo o nome da espécie e um QR code, que direciona para a hashtag dessa pesquisa no Instagram.

Agradeço especialmente à dedicada equipe que fez com que essa ação fosse possível: o produtor Fredy Kowertz, o estudante de agroecologia e guia turístico Henrique Leite e os estudantes de engenharia ambiental Marcus Guerra e Victor Leal. Contamos ainda com o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio representado pela presença sempre solícita de Juliano Oliveira e do Instituto de Água e Terra, que nos cedeu as mudas cultivadas em seu viveiro. E, principalmente, à equipe da Cachoeira da Mariquinha sob direção de Odair Scheibel, que nos cedeu 1.000m2 de terra para o plantio, num gesto visionário de apoio à arte contemporânea e ao meio ambiente.

Vista da área da intervenção ambiental: ao fundo, mata nativa dentro dos limites do Parque Nacional dos Campos Gerais; à direita, monocultura de soja e à esquerda plantio realizado com mudas de floresta de araucária, ambas as áreas pertencem à propriedade particular que integra o complexo natural da Cachoeira da Mariquinha. Com essa intervenção, busco refletir sobre os processos de transformação da paisagem, bem como promover a discussão a respeito da arte contemporânea em um contexto transdisciplinar.

Área de Proteção Ambiental da Escarpa Devoniana

Criada no ano 1992, a Área de Proteção Ambiental (APA) da Escarpa Devoniana abrange um importante patrimônio natural e cultural dos Campos Gerais do Paraná. Esse ecossistema único, formado por campos naturais e capões de floresta de araucária, abriga mais da metade das espécies de mamíferos do Paraná, muitas delas ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira, o veado-campeiro, o lobo-guará, a onça-pintada, o bugio, entre tantas outras.

Em 2016, um estudo mostrou que 38% da APA da Escarpa Devoniana era composta de paisagem natural (água e vegetação nativa) e 52% de paisagem alterada (agricultura, solo exposto e reflorestamento de exóticas). Ainda assim, nesse mesmo ano, passou a tramitar na Assembléia Legislativa do Paraná um projeto de lei, felizmente arquivado, que buscava reduzir em 70% a área da APA. Na prática, buscava ampliar ainda mais a área de produção agrícola e extrativista, principais fatores de degradação ambiental e perda de biodiversidade.

Essa situação ilustra bem o conflito de interesses existente nessa região, de um lado proprietários rurais e empresários buscando o lucro individual por meio de atividades de grande impacto ambiental e, de outro lado, o interesse coletivo em garantir a conservação dos recursos naturais e a biodiversidade para as futuras gerações.

Referências: (1) Plano de Manejo da APA da Escarpa Devoniana, Governo do Estado do Paraná, 2004. (2) Enciclopédia Biosfera, Centro Científico Conhecer, Goiânia, 2019.

Reproduzo aqui o clipe de “Pare. Preste Atenção!”, lançado em 2017, voluntariamente, por artistas ativistas pela proteção ambiental da Escarpa Devoniana, com o apoio e envolvimento do Observatório de Justiça & Conservação. Eles se uniram e, por meio da arte, mostram que abusos contra a biodiversidade e os direitos da coletividade não passarão. Para saber mais, assista “Os Últimos Campos Gerais”
Ponta Grossa, Paraná, 2020
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